sexta-feira, janeiro 14, 2005

uma onda enorme

não dei conta de ter chegado a esta figura. não me lembro como era antes. duvido que tenha existido antes. compreendo apenas que a determinada altura o meu corpo mudou, ou foi mudando. não tem grande importância o percurso, porque não me recordo. sinto pudor em qualquer circunstância, sinto-me envergonhado, diminuído. transformei-me quando me confrontei com o espectáculo anormal diante do espelho. quando me apresentei ao triste ser disforme que roubou a minha vitalidade. a imagem que consumi e vou consumindo sem se esgotar, é usada como fundo fotográfico em todos os meus movimentos. a pessoa que conheci nesse instante, fez-me exibir fielmente a sua imagem pelo resto dos meus dias. despir-me é um acto de representação, suga a minha energia até me deixar exausto e tornar-me num vegetal. é um ritual que evito tornar público, considerando como público, tudo, incluindo eu. o físico que uso atormenta-me e inibe qualquer tentativa de celebrar o resto. vivo obcecado com cada pedaço do meu corpo, com cada movimento que executo. gozo tranquilo o escuro, quando apenas percebo o toque na pele. os calos nas mãos e as manchas salientes dos dedos. a secura da pele e os pelos em excesso. irrito-me com o arrastar dos pelos dos ouvidos na almofada. com as pregas do pescoço a puxar-me a face. a comichão do nariz peludo. enojo-me com a pele flácida e carnuda e os ossos pesados, curvos com a força do tempo, o peso da maturidade. envergonho-me com os tufos mal paridos em redor dos mamilos e as sobrancelhas fartas em exagero desalinho. assombram-me as pernas esguias cobertas de ralos pelos. de pele baça, de nódoas constantes, de forma dorida, de coxas largas e tortas. insulto os pés calejados e dobrados, com unhas amareladas e desalinhadas nos seus dedos comidos. sinto o sexo como um intruso, pertença do obstetra, como animal assexuado, raquítico, paralítico. os meus peitos deixam-se ficar esquecidos na cama, aconchegados nos lençóis, enrolados em si mesmo. prendem-me os gestos. o ar denuncia o meu escasso cabelo, revelando a careca e a cabeça amolgada. obrigado a conviver com o resto do mundo, esforço-me por me camuflar na inércia da paisagem. evito concentrar em mim qualquer atenção. leio o jornal. quando me levanto para me banhar, mantenho a vista presa no mar e não a desvio. é um enorme constrangimento passear a minha carcaça pela toalha dos outros e esboçar o sorriso de quem está em férias. espetar no nariz dos conhecidos, a minha barriga inchada. o monstro amorfo que me arrasta pelas ruas, pelas praias. que me entala em elevadores e escadas, que me afunda quando me sento. um sorriso para a senhora e o desejo que não demore os seus olhos pela minha imagem. o meu desmedido umbigo e o cotão acumulado. na praia não oiço mais que os meus pés na areia, não me lembro de mais nada que não seja de mim mesmo, em pé, diante de todos e da minha figura gasta, imposta no cenário. imagino-me a rir, de face doente e dentes manchados. de corpo descaído. de braços pendurados. de ti também me esqueci. não sei onde te deixei, nem me lembro da última vez que te vi. a mulher em ti, escondeu-se. não dei conta de mudares. não assisti à tua transformação. no mesmo instante que me conheci no espelho, vi-te também na cama, desfeita. agora deste-me esse corpo acabado e deves ter partido para outra ilha qualquer, ou ficaste em Portugal, em casa, com o teu verdadeiro amor. enquanto te moves pareces ceder ao peso das paredes à tua volta, pareces inclinar-te como se te empurrassem e encolhes os ombros devido à força do resto todo. quando te ris, não estás realmente a fazê-lo, mas a encobrir-te e falas com as pessoas fitando-as nos olhos, para que não tenham oportunidade de observar os teus movimentos, manias, tiques e imperfeições. nós fomos jovens e sentimos desejo pelos nossos corpos, não tenho a menor dúvida em relação a isso, mas não me lembro do período em que fomos ficando sacos de nós mesmos e nos armazenámos na dispensa. enquanto fizemos sexo há pouco, apaguei-te. não suportei os teus murmúrios, nem as tuas tetas penduradas. tens as ancas do tamanho desta ilha, a pele mais morta que a minha, e a face pouco mais expressiva que a parede atrás de ti. os teus cabelos nem se mexeram com o movimento e tive medo que caíssem entretanto. no fim, quando descansavas no meu peito, não reconheci o teu cheiro. desolei-me com a raiz cinzenta e fraca do teu cabelo a desafiar a tinta que os cobre. esmoreci com o amontoado flácido, maduro em demasia, que ofendia o quarto.

1 comentário:

Anónimo disse...

este monte de água não se deixava comentar, caramba! Nós fomos jovens. Tá dito tudo. Tens comissão na cirurgia plástica ou só no ginásio? e fotos do gajo quando era novo? Maria