sábado, outubro 18, 2008

um palco

Não tenho a vida a andar para trás. Não estou de viagem ao passado sem bilhete de regresso. Não é uma revisita. Não sinto um retrocesso emocional, uma analepse nostálgica nem estou preso a glórias gastas. O mundo não está ao contrário, o mundo não está de pernas para o ar. A minha vida adiantou-se, passou por mim e tive um vislumbre. Assustei-me perante a constatação de que a deixei ir mais longe. Para além de mim. Mais rápida, ultrapassou-me. E eu deixei de compreender onde me enfiei.

No palco, tu não estavas, embora te fitasse mesmo à minha frente. Embora não te largasse mordendo-te com os olhos, inspeccionando todas as covas da cara, gestos fabricados, encenados e outros mais ingénuos. Embora te devorasse em aflita contemplação, não te vi. Multidão de estrangeiros em êxtase contigo e eu aqui deslocado, com saudades da dor que me emprestaste. Confuso. Impedido de me fundir na amalgama em chamas, colado estático ao vibrante chão. Já não te procuro, vais à minha frente sem olhar para mim. Os segredos que cantas não contam histórias que eu tenha vivido. Esse pedaços eu não me lembro e falas de mim enquanto estive ausente. Mas todos sabem. Onde fiquei? Quando te encontro? E porque me baralhas com confidências que me confias mas não reconheço? Continuas a falar para mim, julgo, mas não me revejo, nem sei quando te perdi, ou quando adormeceste. E tudo o que precisava era que acalmasses e me confessasses que estamos cá os dois escondidos, camuflados, travestidos, mas juntos. Que me aninhasses nos teus lamentos que foram meus e me segredasses que o resto são manobras toscas para saciar a fome de mudança. Que me pedisses para mantermos a farsa e bailássemos com um mundo iludido.

Há verdades que se deviam ficar pelas fantasias.

quarta-feira, outubro 15, 2008

tolo (canções)

Oh diabo! Onde perdeste as botas?

Porque não consegues tornar-me um homem?

Tu, mosquito, onde besuntas as patas?

Quem é que me cheira hoje?

Quem é que me pica hoje?

Eu sou um espantalho, um cabide de pau.

Troco uma mão por sapatos

Tenho a cabeça de um calhau.

Oh gatuno, de quem tiraste a cara?

Porque não me roubas a mim?

Sou pelintra, sou arara, tenho os bolsos cheios de nada?

Eu sou uma cana, parafuso sem porca,

Um código numa única barra,

Sou um trapo sem tecido.

Oh Senhora, a quem pedi eu este zero?

Esta tola apatia?

Na minha terra há rei,

Que mesmo burro monta o poleiro.

Há juiz sem valores,

A pregar como martelo.

E eu, um bobo sem corte,

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

Oh diabo, onde perdeste as botas?

Porquê ser homem, é tonto?

Diz Senhora, pariste quem, a mim, mais alguém?

Oh mosquito não tenho sangue?

Sou latão, sou palha?

Sou um degrau numa janela?

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

segunda-feira, outubro 13, 2008

vago (canções)

Estou incompleto e faço-me de entulho

Apanho-me por entre furos, às vezes não encho a mão

Minúsculo instável

 

Vejo um trilho e monto-me sem manual

Atiro-me atropelado

Há outro que deambula, adivinho

 

Sem brilho

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Estou paralisado e faço-me de embrulho

O encanto foi dormir

Deixou-me dinheiro para consolo

Há mais quem rescalde, murmuro

 

Sem brilho

 

Para belo e adormecido

És pouco sereno, pouco vendido

Para poeta abatido

És muito vago, pouco sentido

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Sem brilho

o quarto

Há um segredo debaixo da almofada, que repete da mesma forma os dias. Há um gravador com uma mensagem fastidiosa, desconfortável mas necessária, que debita reguladas instruções e tarefas a executar no dia que se levanta. Há uma luz da mesma forma matemática e geometricamente precisa a desenhar volumes e riscar superficies. Uma luz quotidiana, eficaz, regular, moderada, ecológica, natural, económica e desinteressada sobre tudo, a não ser desempenhar a simples função de iluminar sem pretensões, um espaço ritmado por ordens compassadas. Há um som de discurso cuidadosamente articulado e sílabas vincadas e imaculadamente ditadas, um único som que preenche maquinalmente o silêncio absoluto nos seus calculados intervalos. Há um quarto morto com a teimosa disposição dos móveis despidos de valor e intenções a não ser as de preencher o menos óbvio espaço, o menos útil espaço e aí ocupar o que lhes foi permitido. Há contornos tristes de reflectidas frias luzes e desanimadas cores mas sem disso saberem, por ter-lhes sido ordenado que não provocassem nenhuma sensação, que não induzissem ao que quer que se possa sentir, um único pensamento, uma única dúvida, um único sentimento, uma única emoção. Estas superfícies foram programadas para não serem vistas, ouvidas, cheiradas, repetidas, memorizadas ou adivinhadas. Os momentos passados neste espaço são invisiveis. Há um corpo em posição suspensa. Em desalinho, dissonante com o quarto, desajustado ao espaço, apenas condizente na expressão simples, mínima e serena, de um rosto recto, inexpressivo, intemporal. Há um corpo justo, proporcional, ponderado, propositado.

 

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias, diferente de todos os restantes. O dia é diferente deste quarto, mas lá fora. O dia lá fora é sempre diferente, exceptuando a única coisa em que o dia é igual aos outros. O dia é apenas igual aos outros dias, lá fora, pelo facto de que tu não estás lá fora. Tu nunca estás lá fora e nisso os dias são todos iguais. Neste quarto, tens de ser diferente todos os dias, como o são os dias lá fora, com a excepção de que nunca estás lá fora. Tu estás sempre neste quarto e essa é a única coisa que te é permitida ser igual todos os dias. Os dias cá dentro têm de ser todos os dias diferentes, tal como são lá fora. Os dias cá dentro são sempre diferentes, com a excepção de que esta mensagem é igual todos os dias e tu nunca estás lá fora. Hoje vais ser diferente como és diferente todos os dias, excepto lá fora, onde és sempre igual porque nunca estás…

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias…

sexta-feira, outubro 10, 2008

parto

Porque ninguém vai hoje entrar neste hospital. Porque eu não sinto que ajude alma alguma. Porque as luzes verdes amarelam os bancos e já doentes tossem estas portas. Porque o pó enche este silêncio. Porque a sala dormida de febre. Porque as esperas suam desespero e ódio. O vírus radia da TV. A noite aqui não entra. Hoje ninguém entra neste hospital. A morte já está cá.

 

O telefone. A emergência. Quanto é que dou a alguém? Quanto é que empresto de ajuda, quanto me entrego? Quanto é meu desta sala de bocas e gritos digitalizados amarfanhados e diluídos em piadas mortais? Quanto há de humano nestes ecrãs e telefones. Quanto há de urgente nestas vozes? Quantas vidas salvei? Quantas vezes matei?

O telefone toca. É morte?

 

Os pés. Mexer. A casa. O escuro. Luz. Sair de casa. O telefone. Não é dor. Não tem nome. Tenho nome? Falar.

 

Com contracções de 3 em 3 minutos.

Peço desculpa mas não estou a compreender, está a dizer que VOCÊ está com contracções? Que vai entrar em trabalho de parto?

Sim, por favor! Mande alguém rápido!

Está alguém consigo?

Não, estou só.

(…)

Dê-me a sua morada, por favor.

 

Não são dores, não há nome para isto. Não há tempo para isto, não corre nem anda tempo para isto. Corredor, portas, parquet, luz, escadas. Escadas não. Luz, gás, onde está a mala, corredor, traz adiante, pés. Pede aos pés, mexem-se, não há dor, não há nome para isto, venham rápido. Corredor. Há tempo? Não é dor. A chave, os pés, mexam-se. Quanto tempo? Há tempo?

 

Passa-se qualquer coisa de errado, não compreendo.

Minha senhora, não vê o meu estado?

Mas isto é uma piada?

Foda-se! Levem-me.

Não há tempo.

 

Preta! Dona Preta! Ajuda-me! Esta mulher não me vai levar a lado nenhum.

 

Meus Deus, mas está quase a nascer! Mas não vai para o hospital?

Mas você está a ver o mesmo que eu?

Porra de mulher, mas não é uma ambulância, mas não vai nascer um bebé?

 

Isso Preta! Dá porrada nessa puta e levem-me daqui que não aguento.

 

Mas não vê que é um homem?

E não vê que a criança vai nascer?

Mas vai sair por onde?

Caralho, salvem este homem!

 

Eu vou morrer Preta. Eu não aguento.

 

Vai sair por onde?

 

E insiste.

Eu só estou grávido. Eu não tenho respostas.

 

 

Mas a obrigação da senhora não é levá-lo? Este homem precisa ajuda.

 

Preta, eu não aguento. Preta, eu vou. Parto.