quarta-feira, novembro 17, 2010

gonçalo vai à rua

maria sai de casa. maria sai de casa sem casaco. maria sai de casa sem casaco e sem tabaco. maria sai de casa, deixando o tabaco no casaco e esquecendo–se do casaco apoiado nas costas do sofá. maria sai de casa sem casaco e nele o tabaco, calçando chinelos. Maria sai de casa, apressada para trabalhar e apercebe-se, já depois de três passos dados, com pés alagados numa poça de água, salpicada de grossos pingos de chuva peganhenta que veio para a rua com chinelos calçados e sem casaco. e nele o tabaco. volta para trás. na rua corre-se. cruzam-se vultos em fuga, uns mais rápidos e audazes que outros, a confundirem-se com bermas e alpendres, arcadas, carros e árvores. os sobretudos e gabardines, as pernas pesadas, as gotas das golas, os cabelos escorridos, as botas encharcadas, os sapatos luzidios, e o chapinhar destes moldes e pedaços todos, confundidos na chuva, emaranham-se numa rede mal definida. em rotas toscas e atordoadas, a desbravar partículas frias com destino a pousos mais enxutos. a água vem disparada em rajadas densas. maria leva menos de um segundo a dar atrás as mesmas três passadas. mas não rápida o suficiente para evitar a manta de chuva abatida no seu corpo. riu-se. riu-se de não ter saído calçada e vestida. riu-se de não ser suficientemente concentrada nas acções triviais. riu-se com preocupação, para não vincar mais em seu espírito esta inquietação. entrou em casa desassogada. voltou à banheira que tinha largado há não mais que pouco tempo e encharcou-se em escaldão. pela janela viu que não ia tirar o casaco das costas do sofá nem calçar as botas. enterrou a mão no bolso e tirou-a já com um cigarro.
gonçalo vai à rua. as árvores de pingos reluzem os candeeiros e os faróis. os vidros escorrem vapor. a noite espalha-se quente e abafada. tira a luva para sondar cigarros no bolso do forro do casaco e tira um. a chuva recomeça e o cigarro não foi aceso.

rumo


não encontrei onde me agarrar. não entendo onde terminam os braços e começam as mãos. não vejo mais que umas toscas formas e cores indefinidas ou por mim desconhecidas. vou ao encontro daquilo ali, que talvez seja qualquer coisa. vou de encontro. não descubro matéria sólida, não descanso em pensamentos fáceis ou imediatos. não me sento em piso fértil ou seguro. não me sento, não consigo pousar. o que aqui estava mudou de sítio. existem marcas do que parece ter sido alterado, ou quero acreditar que foi alterado, que isto não é só um sitio disforme, imperceptível. tão vago que continuo sem entender se o meu braço é extensão do meu corpo e se as minhas mãos começam, quando meu braço termina. quero é agarrar depressa qualquer coisa, sem escorregar. percebe-se o inicio de marcha. o meu corpo solta-se em sintonia com o movimento e equilibra-se o possível, contrariando a queda. há aqui uma intenção difusa de se ir para algum lado. derrama-se no suposto piso qualquer coisa de novo, na medida em que o espaço transforma-se, ao avançarmos. sendo que parecemos avançar. as cores mantêm-se ténues, tão ocas que não entendo tratarem-se de cores, ou então esqueci-me da sua aparência e nomes.

absolvição

e pedi desculpa.
não sou de arrastar-me inchado em orgulho, que já observei muita coisa e sei responder com a cara dos outros, daqueles que dobram membros a mando. custa-me pouco. leva-me muito menos, porque involuntariamente já o pulso está estendido e suspenso na oferta mais que antecipada e sem ordem atiro-me. é feminino? qualquer coisa menos outra coisa tem de ser obrigatoriamente antagónica. é a teoria, invariavelmente mastigada, do equilíbrio natural. é? não masculino é feminino? não acutilante é mole?
não sou de descansar em dúvida. tenho reparado que, perdão, sei desde muito cedo, que ao entregar-me em agrado, não atormenta meu espírito qualquer desconfiança ou segredo. o mal é devolvido e entregue, caso seja certo que de menor graça se fala.

domingo, novembro 14, 2010

vivo

…e era mais alto que uma árvore. Mais forte que um touro. Era o que parecia. Com uma pele torrada e engelhada, brilhante do desgaste ao sol. desceu pela rua às curvas, a passo furibundo, aos pontapés no ar, a praguejar. Ninguém quis chamar importante àquele instante, que era já hábito, que no escaldar do chão, logo depois do dia ao meio, as botas do Raimundo corressem a derreter borracha. Que o resmungar se confundisse com o silvar e o assobiar, mais ou menos quente como o próprio ar, ou que viesse mais ou menos pesado nos ombros, ou no sobrolho, dependendo do quanto calor rangia nas telhas e no vidros pequeninos das janelas aflitas a assar, na manhã, na tarde e antes do anoitecer, sempre que o arder do sol disparasse o bafo das chamas até ao pó dos lancis, da fachadas, dos alpendres. E quase sempre, era assim que a rua derretia, sacrificando a calçada e o alcatrão ao lume lento e doente dos dias de verão.
Na lavandaria, os vidros da montra escorrem gotas mornas que se entrosam no vapor morto. o chão

ausente

até diria, com agrado, bom olhos o vejam. mas de facto não o vejo muito bem. parece-me mais abatido. nesse estado faz sentido aparecer? porque não usou este intervalo para se pôr ao fresco? ou desaparecer mesmo? sim, efectivamente esteve ausente. mas fora daqui, não é? porque não aproveitou para sair de vez, daqui, de si, de nós? ir para longe? ou para nenhures, algum sítio para lá de qualquer coisa que consideremos longe? entende-me? para nós seria igual, mas a si fazia bem, não fazia? olhe que parece-me que sim. porque não passou por cá, já que não esteve longe? andou mesmo desaparecido… até tinha comentado isso, julguei que não voltasse. já pensou em sair de si? eu penso muito. nisso e noutras coisas, todas elas fora de mim. sempre fora de mim. o que quer isto dizer? bom, talvez se experimentasse, me conseguisse responder. mas está de passagem ou veio para ficar? faz bem, faz bem…

era só isso

de noite, na luz, iluminado, como se de dia tratasse, fico tenso
podia ser dia.
no recorte da luz, no desenho feito pela sombra, num corpo, num qualquer corpo, um exagero de peso
há aqui mais fantasmas do que era suposto. há aqui mais aparentes memórias do que a razão suspeita.
há aqui um cheio nada. um repleto e perplexo sentimento de vazia suspeita.
pode-se dizer que arrastando por aqui o corpo, pouco se percebe do que ficou atrás e do que avança para outra parte.
podia ser dia, que seria o mesmo, a diferença estaria somente, talvez, desconfio, no desenho da luz e na dureza ou recorte das sombras.
mas uma vez mais, é só uma suspeita e ainda assim, também esta, bastante frágil.
da sombra, do escuro, vem pouco sossego. da luz, pouca calma.
não há sono, nem dormência, nem incómodo. ou pelo menos, não estão convictamente presentes.
há só uma rua, com suas fugazes luzes e ideias fracas, de existências aparentes ou escorregadias.
há esta rua, e outras quaisquer, onde andei. e pouco me lembro dos outros caminhos.
há gente por aqui, mas não recordo se me atrasei por isso.
não consigo lembrar-me de algum episódio em que tenha acontecido qualquer coisa que me tivesse tirado deste estado. ou deste percurso.
há um ritmo. quer dizer, há uma forma geométrica, delineada, não sistémica ou compassada, apenas uma forma, neste caminhar.
aqui, de noite, há mais perguntas.
quanto mais luz há, quanto mais peso nas pálpebras, mas ardor nos olhos, quanto mais penoso o avançar e desbravar da imensidão branca e dura, por estas ruas, sinto mais dúvidas.
e se apagássemos?
- como?
- e se apagássemos a luz, ou o rasto?
- que ganhavas com isso?
- algo novo. remover o que é velho.
- é o que queres?
- é o que é possível.
- vais ficar melhor?
- respondo depois.
- depois será tarde…
mas preciso disso. julgo que preciso. julgo que preciso qualquer coisa. pelo menos é a ideia que tenho. é uma ideia que tenho. aqui exposto à claridade, dói-me a cabeça. e quando não dói estou a preparar-me para a próxima indisposição, que não tarda a vir. e mesmo quando tarda em chegar, é quase como se não demorasse.
é tudo muito frágil, muito volátil. dá-me a impressão que é assim.
- se calhar dás importância às coisas erradas.
- mas calhando, como sabes que são as erradas?
- não sei, mas é uma hipótese…
- tudo é uma hipótese.
- sim, e tudo tem diversas facetas.
- e isso ajuda-me?
- mas queres ajuda?
- pelo menos a luz podia ser mais ténue.
- era só isso, afinal?