sexta-feira, fevereiro 18, 2005

ócio

Sente-se o vento passar por uma fresta da janela mal vedada. O cabelo da boneca sentada no parapeito, balança levemente. Pelo chão espalham-se cartas, recortes, outras bonecas e partes de objectos incompletos. O quarto dorme na morte da tarde. A cama continua por fazer. Lá fora, o sol lambe as fachadas dos prédios e estala a tinta dos carros. A rua rende-se à ociosidade. As pessoas deslizam pelos passeios, em passo de vagar. O mundo desta parte descansa.
Ao espelho, escova o longo cabelo dourado em gestos preguiçosos. Da cadeira escorrem de tempos a tempos, gotas de sangue, no fim do rasto imperfeito. No soalho de madeira do quarto, o sangue já seco, enfia-se pelas fendas. Do mármore branco do corredor, arrasta-se brilhante até ao mosaico da casa de banho, onde já pastoso, esgota-se na banheira. E nela, envolto em mais sangue, pariu-se o feto asfixiado.