quarta-feira, janeiro 19, 2005

o galo mudo

Em todo o reino ouviu-se a música. A noite marota, cheia de lua, convidava à festa. Avistavam-se a quilómetros as luzes no castelo. Vieram camponeses e damas de outros reinados, vestidos a domingo, para extasiar o rei. Era a maior festa de sempre, um banquete para exércitos mil. Vai desflorar, o rei.
Niquélido, desmarido de três vadias, queria a esposa mãe. As donzelas fizeram-se de imediato ao estoirar o apelo. Rebentaram em todos os lagos e canteiros do castelo. Caíram de reposteiros, deslizaram de corrimões. Foi um sem fim de empurrões e sufocos, com tanta mulher a acorrer às terras de sua majestade.
Três núpcias ruíram interrompidas, por teimosia da pila aristocrata. As noivas foram degoladas, acusadas de bruxaria, antes da luz cantar o primeiro dia dos seus matrimónios. O rei foi embrutecendo, mais animal que senhor, amaldiçoando o mundo pelo inútil apêndice. Nenhuma mulher ou mula levantava ao senhor, o pau em lascívia. O primogénito é imperativo na linhagem da casa.
O galo puxou-se ensonado para o poleiro e deteve-se no canto ao escutar na sacristia o rei em confissão. Em vez de acordar as gentes, zombou do senhor em cantiga jocosa. Palavras e palavras de risos contorceram o reino até ao mijo. Areia aos olhos do povo com mais bruxas noivas, é enguiço sumido do rei. O rei voou ao pescoço do animal e apertou-o até cortar-lhe o cacarejo. O pároco invocou piedade pela criatura e fez o galo prometer que ia curar o monarca. O galo agora mudo, escreveu que se fizesse uma festa, com todas as fêmeas, para que uma inchasse o ego do soberano.
A cópula realizar-se-ia numa festa, quis o rei para provar o seu poder.
As estrelas dançaram ao ritmo da procissão de carroças, burros e cavalos, com senhoras e ciganas, meninas e maduras. As estradas banhadas pelo cortejo, os campos salpicados de fauna, todas salivadas de gula, recortando a paisagem, ao encontro do trono da terra.
O galo correu para o castelo, à prova da vida das suas penas. Com o bico a prémio. Atropelou mulas cansadas e putas perfumadas. Passou por carroças com bebés enfeitados e clãs aprumados. Dançarinas esguias e monstros ferozes. Cruzou-se com outros reis em vestes de rainhas e rainhas em vestes de jóias. Era tal a multidão, que a montar todas as bichas e bichos, o rei ficará a testar por semanas e semanas a maldita pila.
À meia-noite, ainda nem tinha comido a décima parte dos intrusos e convidados, foi quando o rei carregou ao salão, o seu corpo imenso. Enquanto os guardas reais apertaram as massas, o galo saltou ao parapeito de uma janela e usou-a de camarote. O senhor deixou a capa preta escorregar ao chão e subiu despido a poltrona. Milhares de matronas e puritanas o imitaram e esfregaram aos ares as suas partes. O majestoso em carnes penduradas e pelos eriçados, ordenou que se tocasse música. Durante horas desfilaram e jogaram tetas e coxas, atiraram-se ombros lisos e cabelos sedosos. Fugiram gotas de calor e escorreram partes de partes por corpos e superfícies lustrosas. Bailou-se em podre e imunda oferenda, seduziu-se os gostos e os gestos, em permissão desmedida. Lambeu-se os olhares do soberano e do mastro tímido, apertado nas largas pálidas pernas. Nenhuma agitação. O pau do senhor está morto, sem júbilo. Dois dias festejados e o rei mais esmorecido, no entanto, mais frenéticas as meretrizes em sedução insuperável. A dança moldou-se em batalha de carne. A oferta ao rei foi dada aos guardas, aos campónios, às outras donzelas, entre guardas, campónios e donzelas. Do salão às muralhas, das muralhas à encosta, da encosta às aldeias. Pelos campos e rios e riachos e bosques. Em absoluta entrega e comunhão de sexos e formas, em fornicação universal, os velhos das novas, das vacas em bois de mulas e pássaras de éguas nos taberneiros das matreiras com coveiros. Cada charco e tufo de erva foram nuvens para o coito livre das criaturas em descompressão titã. O rei adormeceu. O galo caiu do parapeito da janela com os sobressaltados e cavalgadas de um cavaleiro com duas costureiras, despejado acidentalmente no colo do soberano. Em pânico de se ver em cima do senhor, bateu as asas desesperado. O rei acordou formigado na barriga e com um pulsar nas pernas, um bombear no pau. A vista arregalada com cores de penas e a pila provocada pela confusão das asas, forçaram sem controlo o monarca a agarrar o galo e comungá-lo com o seu corpo. O rito curto e bruto, espantoso para os foliões, paralisou o mundo. O senhor em sôfrega ânsia tortura o galo em golpes, saltando aos cortes, com guturais gemidos. Gritos estremecedores a destruírem o reino e a afastar as águas. As gentes e espécies em terror, com o espectáculo da vida toda entalada e expulsa num só acto. Nas mãos do rei sedento, esfomeado, de corpo gigante, o galo quase sem vida, sacode-se em viagens atormentadas. De salto curto, o rei posto de pé, com impulso brusco, inchou o galo de seiva real. O desconsolo e o sono taparam por três dias, um reino em silêncio.

terça-feira, janeiro 18, 2005

fácil

Precipitei-me. Dedilhei o piano imperceptivelmente, rocei as teclas sem as pressionar o suficiente para se obter som, de olhos esquecidos na janela sobejamente rasgada de luz do fim de manhã. Ficaste enterrada no sofá, presa em dúvidas. Sofá branco de sala branca. chegas a ti o pé direito, dobrando a perna, e pousando o queixo no joelho. Massajas os dedos e a planta. Esboças um esgar. Escorres o cabelo pela camisola e amarras-te no estômago já dorido. Atropelei-me na minha armadilha e confessei insustentado. Atirei-me à parede pelo caminho que queria evitar. Debitei palavras amaldiçoado pelos meus pensamentos, em contradição com a vontade. Deixei-te irreparável. Queria apoiar-te, mas sinto-me mais fraco que tu. Queria que me abraçasses também. Quando soube que tinha de te contar, o cenário moldou-se e fechou-se em si e em nós. A luz perdeu a dinâmica, o movimento, o espaço perdeu cheiro, com paredes a perecer e prateleiras sem cor. Os sons num abafo constante. Vi-me tonto a procurar o buraco em ti onde pudesse pousar delicadamente a minha mensagem, sem que percebesses que eu estava por perto. Rondei-te desequilibrado pelo espaço inerte. Precipitei-me. Aprendi contigo a amar o teu irmão e tomava-o como meu também. A perda foi tão monstruosa para ti como para mim. Não havia forma mais leve de dizer-to.

sexta-feira, janeiro 14, 2005

uma onda enorme

não dei conta de ter chegado a esta figura. não me lembro como era antes. duvido que tenha existido antes. compreendo apenas que a determinada altura o meu corpo mudou, ou foi mudando. não tem grande importância o percurso, porque não me recordo. sinto pudor em qualquer circunstância, sinto-me envergonhado, diminuído. transformei-me quando me confrontei com o espectáculo anormal diante do espelho. quando me apresentei ao triste ser disforme que roubou a minha vitalidade. a imagem que consumi e vou consumindo sem se esgotar, é usada como fundo fotográfico em todos os meus movimentos. a pessoa que conheci nesse instante, fez-me exibir fielmente a sua imagem pelo resto dos meus dias. despir-me é um acto de representação, suga a minha energia até me deixar exausto e tornar-me num vegetal. é um ritual que evito tornar público, considerando como público, tudo, incluindo eu. o físico que uso atormenta-me e inibe qualquer tentativa de celebrar o resto. vivo obcecado com cada pedaço do meu corpo, com cada movimento que executo. gozo tranquilo o escuro, quando apenas percebo o toque na pele. os calos nas mãos e as manchas salientes dos dedos. a secura da pele e os pelos em excesso. irrito-me com o arrastar dos pelos dos ouvidos na almofada. com as pregas do pescoço a puxar-me a face. a comichão do nariz peludo. enojo-me com a pele flácida e carnuda e os ossos pesados, curvos com a força do tempo, o peso da maturidade. envergonho-me com os tufos mal paridos em redor dos mamilos e as sobrancelhas fartas em exagero desalinho. assombram-me as pernas esguias cobertas de ralos pelos. de pele baça, de nódoas constantes, de forma dorida, de coxas largas e tortas. insulto os pés calejados e dobrados, com unhas amareladas e desalinhadas nos seus dedos comidos. sinto o sexo como um intruso, pertença do obstetra, como animal assexuado, raquítico, paralítico. os meus peitos deixam-se ficar esquecidos na cama, aconchegados nos lençóis, enrolados em si mesmo. prendem-me os gestos. o ar denuncia o meu escasso cabelo, revelando a careca e a cabeça amolgada. obrigado a conviver com o resto do mundo, esforço-me por me camuflar na inércia da paisagem. evito concentrar em mim qualquer atenção. leio o jornal. quando me levanto para me banhar, mantenho a vista presa no mar e não a desvio. é um enorme constrangimento passear a minha carcaça pela toalha dos outros e esboçar o sorriso de quem está em férias. espetar no nariz dos conhecidos, a minha barriga inchada. o monstro amorfo que me arrasta pelas ruas, pelas praias. que me entala em elevadores e escadas, que me afunda quando me sento. um sorriso para a senhora e o desejo que não demore os seus olhos pela minha imagem. o meu desmedido umbigo e o cotão acumulado. na praia não oiço mais que os meus pés na areia, não me lembro de mais nada que não seja de mim mesmo, em pé, diante de todos e da minha figura gasta, imposta no cenário. imagino-me a rir, de face doente e dentes manchados. de corpo descaído. de braços pendurados. de ti também me esqueci. não sei onde te deixei, nem me lembro da última vez que te vi. a mulher em ti, escondeu-se. não dei conta de mudares. não assisti à tua transformação. no mesmo instante que me conheci no espelho, vi-te também na cama, desfeita. agora deste-me esse corpo acabado e deves ter partido para outra ilha qualquer, ou ficaste em Portugal, em casa, com o teu verdadeiro amor. enquanto te moves pareces ceder ao peso das paredes à tua volta, pareces inclinar-te como se te empurrassem e encolhes os ombros devido à força do resto todo. quando te ris, não estás realmente a fazê-lo, mas a encobrir-te e falas com as pessoas fitando-as nos olhos, para que não tenham oportunidade de observar os teus movimentos, manias, tiques e imperfeições. nós fomos jovens e sentimos desejo pelos nossos corpos, não tenho a menor dúvida em relação a isso, mas não me lembro do período em que fomos ficando sacos de nós mesmos e nos armazenámos na dispensa. enquanto fizemos sexo há pouco, apaguei-te. não suportei os teus murmúrios, nem as tuas tetas penduradas. tens as ancas do tamanho desta ilha, a pele mais morta que a minha, e a face pouco mais expressiva que a parede atrás de ti. os teus cabelos nem se mexeram com o movimento e tive medo que caíssem entretanto. no fim, quando descansavas no meu peito, não reconheci o teu cheiro. desolei-me com a raiz cinzenta e fraca do teu cabelo a desafiar a tinta que os cobre. esmoreci com o amontoado flácido, maduro em demasia, que ofendia o quarto.

no céu

Coisa: Oh Senhor, estais bem? Pareceis pálido, levantais-vos que me estais a afligir. Cuidai sua saúde! Necessitais alguma coisa?
Senhor: Pára de falar arcaico, coisa! É o estômago outra vez!
Coisa: Mas porque criastes nome para todas as coisas e criaturas e me deixaste inominado?
Senhor: E isto é hora de discutires isto, pelos céus!
Coisa: Oh senhor, não fostes vós quem criou o céu e a terra e tudo o que em si está contido, não fostes vós que destes estômago ao mundo, porque afinal tolera a vossa dor?
Senhor: Já disse para parares de falar dessa maneira ridícula. Traz-me qualquer coisa, maldição!
Coisa: Oh senhor, mas porque me rogais pragas, as suas maldições são resultado da ira infinita e eu sempre fui seu fiel servo!
Senhor: Mas saiu-me da boca para fora, estou cheio de dor!
Coisa: Oh senhor, mas não fostes tu quem criou a dor para amenizar a soberba do mundo e penitenciar os pecadores, dizei-me porque sofreis vós ao invés da vossa criação?
Senhor: Por amor de Deus, se não me ajudas, não me chateies.
Coisa: Amor a Deus? Mas Deus sois vós! Senhor, a dor está a consumir-vos. Não sois capaz de discernir. A que Deus vos referis. Tendes vós por ventura conhecimento de existência para além de Sua Plenitude? Estais a referir-vos a um Ente terceiro? A outro Senhor? A um vosso irmão gémeo?
Senhor: Meu irmão? Qual irmão? Diz-me! Que sabes tu?
Coisa: Então é verdade senhor? Tendes vos um irmão gémeo?
Senhor: Onde está ele? Quem é ele?
Coisa: Senhor estais a confundir-me.
Senhor: Diz-me coisa, porque me ocultaram esse facto?

--

Mãe: O que queres?
Senhor: Mãe, preciso falar contigo.
Mãe: Mãe? Olha lá, estás parvo ou quê?
Senhor: Mas isso são modos de falar comigo?
Mãe: Chegas aqui a chamar-me mãe, mas eu sou mãe de alguém?
Senhor: És minha mãe.
Mãe: Passou-se! Desde quando tens mãe ou pai? Tu és o Todo Poderoso, estás no topo da pirâmide, no cume do mundo, és o que está para lá de tudo. Além de ti, nada! De onde saiu essa ideia?
Senhor: Preciso de falar com a minha mãe e portanto criei-te.
Mãe: A mim?! Pareço a mãe de Deus? Dava para te esmerares, esforçares-te mais um pouco e criares a Mãe de tudo com mais magnificência, divindade, perfeição?
Senhor: Posso falar?
Mãe: Tu respeita a tua mãe!
Senhor: Onde está o meu irmão gémeo?
Mãe: Mas qual irmão?
Senhor: A coisa confessou-me que tenho um irmão.
Mãe: Mas nem mãe tu tinhas e agora vens cobrar-me um irmão?
Senhor: Eu agradeço sinceramente que sejas mais afável a falar comigo, porque esse tom não me está a agradar.
Mãe: Oh pirralho, se estás aqui é porque sou tua mãe, se és o que és deves a mim. Se és o mais que tudo, agradece-me e agora sossega, que não há gémeo nem coisa nenhuma!

--
Gémeo: Diz...
Deus: Afinal encontrei-te.
Gémeo: Iupe... E então que queres?
Deus: Conhecer-te. Tenho-me sentido estranho, sempre me senti. Se calhar porque me faltava uma parte, sempre fui incompleto sem o perceber.
Gémeo: Deus, Deus. Pensa bem no que dizes.
Deus: Foi-me escondida a tua existência. A mim que tudo sei.
Gémeo: Como foi então possível isso acontecer?
Deus: Tenho inimigos. Gente que me inveja, que me persegue.
Gémeo: Não és tu o criador de tudo, não és tu o criador da inimizade?
Deus: Esperava de ti mais compaixão, mais amor. Ansiei encontrar-te e entregar-me, partilhar contigo a Criação.
Gémeo: Ouve bem o que dizes, pensa naquilo que estás a fazer. Acreditas mesmo que existo? Que tens um irmão gémeo? Parece-te lógico, a ti, que és o dono da Existência, que hajam factores que escapem à tua vontade e determinação? Não andas a enganar-te desde sempre? Não percebes que vives no teu mundo? Não compreendes que inventaste tudo em torno de ti, com todas as formas e almas à tua imagem? Não te parece exagero que o cosmos, os universos, as galáxias e os seres se movam e desenvolvam de acordo com a tua vontade e se comportem como determinas? O Mundo é uma ilusão, consequência da tua esquizofrenia. Não vês que foste tu quem criaste Tudo? Pura invenção.

segunda-feira, janeiro 10, 2005

as caixas descritas no conto que se segue, são de facto comercializadas. Inspirei-me nelas para escrever o conto

às páginas tantas

Alberto não tem o hábito da leitura, na verdade apenas folheou um ou dois livros em casa de amigos, apenas por mera curiosidade ou falta de ocupação. Ter-se abrigado da chuva no toldo da livraria foi o impulso que precisava para conhecer o vasto e complexo mundo das letras. Quando Teresa se mostrou bastante surpreendida, quase chocada, perante a confissão dele de que não sentia interesse pela leitura, Alberto ficou tremendamente envergonhado e prometeu a si mesmo que iria tentar ler qualquer coisa. O casal conheceu-se há 21 dias, num enfadonho jantar da empresa onde trabalha Alberto e a cunhada de Teresa. O percurso de ambos, desde então, não foi mais original que o dos inúmeros casais de namorados e actualmente constituem um feliz, recente e necessariamente pateta par de seres iluminados pelo universal amor. Teresa vive em constante sobressalto, assustada com o quotidiano moderno e vazio, de acordo com as suas convicções, usando como refúgio e universo alternativo ao que lhe impuseram o da leitura. Seja qual for o tema, podemos encontrá-la a ler enquanto bebe chá na baixa, ou espera o resultado das análises médicas. Não considera Alberto um ser desprovido de inteligência, mas a ignorância e desinteresse demonstrado pelo veículo de conhecimento e responsável por tremendas sensações, como é a leitura que lhe é tão vital, é para ela um motivo de desapontamento.
Sacudiu levemente o chapéu de chuva depois de fechá-lo, em frente à montra de livros e recordou a expressão de surpresa contida da sua namorada. Abriu a porta da livraria e sentiu o conforto do ar aquecido e atmosfera calma, contrastante com o clima agreste e o turbilhão de ruídos no exterior. Vasculhou de longe com rápida passagem de olhos, os mais diversos títulos e temas. Prendeu-se diante de algumas estantes de autores nacionais, com publicações de elevado apelo visual. Num dos cantos da livraria, estava exposto um conjunto de caixas que aparentavam fazer parte de uma colecção. Aproximou-se e constatou que embora tratando temas diversos, estas caixas eram compostas cada uma, de um livro e uma oferta, apresentados lado a lado, como se se tratasse de um conjunto de natal de água de colónia e gel de banho. Uma das caixas continha um exemplar de "Aromas e Terapias - Saberes exóticos" acompanhado de um frasco de essência de baunilha. Outra das caixas da colecção era vendida com o "Sonata ao entardecer em Villigon" e um CD de música clássica variada. Existiam várias embalagens com ofertas alusivas ao tema do livro incluído, como que a complementar a leitura e torná-la mais real. Alberto decidiu-se por uma embalagem cor de chumbo, com um revólver e a obra "Hei-de morrer como queres" de um autor estrangeiro de nome impronunciável.
Teresa mostrou-se reticente em relação à ideia das embalagens, talvez considerasse isso uma forma de diminuir o valor literário das obras, mas considerou louvável o esforço de Alberto e desejou que ele o tivesse feito por interesse próprio e não como forma de a agradar.
Após ter deixado Teresa em casa, Alberto decidiu-se a dedicar à leitura meia hora, antes de se deitar. Vestiu o pijama e o roupão, desligou o televisor e sentou-se na poltrona ao lado da lareira, iluminado pelo candeeiro de pé alto, nunca antes usado, oferecido pela anterior companheira. Abriu a embalagem, com dois compartimentos, retirou o livro e observou a capa e contracapa sem as ler, pousou-o e retirou o revólver. Este revela-se mais pesado do que supunha e possui no tambor três balas. O revólver parece real. Pousou-o, algo assustado e perplexo com a compra que tinha feito. O revólver não é um brinquedo, como seria espectável. Levantou-se, dirigiu-se ao hall, com o intuito de telefonar a Teresa e dar-lhe a conhecer a sua descoberta. Pegou no auscultador e no instante em que colocou o dedo no disco para girá-lo e marcar o primeiro número, recuou na sua decisão, por parecer-lhe prematura e injustificada. Sentiu-se como criança, assustada com o escuro e envorgonhou-se com isso. Sentou-se novamente na poltrona. Olhou para o livro, agarrou-o e depois de ler o titulo e o autor abriu-o. Hei-de morrer como queres.

Após ler o título e o autor, abri o livro. Nesta altura soube que o comprei com um único propósito. Encontrar-te. Não sabia se escreveste o livro sobre nós e falas de mim directamente ou se é mais uma das tuas histórias inconsistentes e paranóicas. A principio não relacionei os personagens connosco, nem os eventos que descreveste me pareceram familiares, mas entretanto, casualmente, ,percebi que usaste as nossas inciais, assim como as iniciais dos nossos amigos. Criaste uma cidade desconhecida, mas deixaste muitas pistas, intencionalmente, para que eu descobrisse a mensagem. Foste tu que te suicidaste Teresa, eu não te matei.

Alberto sentiu-se desconfortável com a coincidência. Mudou de posição na poltrona até enterrar-se numa posição mais agradável e continuou a ler. Sem se aperceber, a meia hora transformou-se em três horas, no entanto, ainda não tinha lido mais que a primeira página do livro. O telefone tocou. Alberto estremeceu de susto e quando se levantou para o atender, já tinha tocado pelo menos cinco vezes. A Teresa foi morta a tiro, Alberto. A Policia gostaria de falar contigo. Foi-lhe dito no meio de algumas frases difusas. Pousou o auscultador ainda de livro na mão e dirigiu-se à sala. Ao pousar o livro na mesinha, Alberto pegou na arma para guardá-la num local mais apropriado e decidiu retirar as balas do tambor. Apenas lá estavam duas.

quarta-feira, janeiro 05, 2005

absurdo

Ferdi: Passa-me uma letra.
Elia: A propósito de...
Ferdi: Sei lá! É indiferente, não é?
Elia: Tenho cara de quê?
Ferdi: Não tens. Mas qual é o objectivo disto?
Elia: Ferdi, sei tanto como tu. Cheguei agora. Vim dar uma perninha.
Ferdi: E por acaso não achas que está mais que batido? Onde está a originalidade? Que tema mais idiota.
Elia: Estás a perguntar a mim?
Ferdi: Primeiro, não estou obviamente a perguntar nada, mas se já é absurdo, gostaria que o desenvolvesses de alguma forma.
Elia: Segundo...
Ferdi: Fico-me pelo primeiro.
Elia: Não mudaste nada.
Ferdi: Desde quando? Já me conhecias? ...Eu? Nem sei como és.
Elia: Então?!
Ferdi: Que foi?
Elia: Era suposto ser eu a dizer isso. Fazes a pergunta e respondes também?
Ferdi: Que diferença faz, queria enganar o gajo. Mas se insistes, diz.
Elia: Eu? Nem sei como és
Ferdi: Já não faz muito sentido, pois não?
Elia: Socorro! Isto não acaba?
Ferdi: Por acaso... este texto era dispensável.
Texto: Oh pessoal, falem por vocês.
Elia: Foda-se! Vai de mal a pior.
Ferdi: Queres que personifique o autor?
Elia: Mas estás parvo? Tu és o autor.
Ferdi: Tu também. Aliás não somos nada, eu não estou a falar com nada. Eu não estou a falar.
Ferdi: E se fosses à merda?
Merda: Estou ocupada, queridos. Já só aceito marcações para Abril.

Ensaio sobre ensaios

Confesso nunca ter lido nenhum ensaio, mas sinto uma enorme curiosidade. De que tratarão?

terça-feira, janeiro 04, 2005

colheita

No dia 01/01/2005 às 02:00, hora de Lisboa, Filipe, embriagado demais, baixa-se ao tentar apanhar aquilo que lhe parecia uma moeda, sem fazer caso do carro que seguia desgovernado pela rua acima. Foi cuspido vários metros antes de desfazer o crânio entre um dos pneus do carro e do lancil.
No mesmo instante, no Japão às 10:00, hora local, Kanji curvou-se empurrando os ombros para os joelhos e aconchegou o estômago com as mãos. Sem ter tempo nem força de gritar, caiu morto num charco, ao lado das canas que tinha acabado de colher.
No México, em simultâneo, às 21:00, Javier, completamente zonzo devido ao estoiro do foguete de fogo de artifício, inclina-se para apanhar um dedo da mão direita.
Algures, hora local, Ele baixa-se para apanhar o lápis que precisa para riscar três nomes. Mas as costas pregam das suas partidas. As barbas roçam o chão enquanto, a cambalear, alcança uma cadeira e deixa-se cair lentamente no chão. Enrola-se em si mesmo por tempo indeterminado, como um feto.

perdido

Sente-se perdido. O percurso foi mal estudado desde o inicio. Apercebeu-se tarde, quando avistou um muro. É tarde para tentar o caminho de regresso. Seguiu ao lado do muro, pela esquerda. A lua estava cheia, o que muito o auxiliou a contornar os obstáculos que o obrigavam a afastar-se do muro e podiam consequentemente desviá-lo do percurso mais fiável. Não comia desde o dia anterior, agravando o cansaço e a motivação. Correu o mais que pode, ignorando as sombras e os sons da floresta, sempre seguindo o muro. Saltou ramos e troncos, saltou poças e armadilhas. Contornou as mais assustadoras árvores, enganou os mais sombrios vultos. O dia rompia, quando esgotado pelo cansaço, adormeceu encostado ao muro, com receio que este desaparecesse. Acordou sobressaltado com o som de uma buzina. Correu ainda mais depressa que antes e em poucos minutos, no local onde o muro desenhava uma esquina, encontrou uma estrada. Decidiu continuar pela estrada, ao lado do muro. Ao fim de uma hora, encontrou um portão e ouviu vozes do outro lado. Desatou a ladrar e o portão abriu-se.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

com amor

Concentrei-me no teu olhar. Tentei não tremer demasiado, deixar transparecer o meu nervosismo incontrolável. Mas és meu pai. Conheces cada ruga minha, sabes de cada episódio meu. Estiveste do meu lado, ou contra mim, ao longo destes anos todos, nunca ausente. Se me fixar no teu olhar de forma a esquecer-te as feições e a tua expressão, será mais fácil para mim disparar. Querer que não percebas a minha fragilidade é inútil, sair vitorioso é impossível. nem sequer te mostras surpreendido, nem mesmo derrotado. Nem desta vez, pela última vez, demonstras medo. Estás aí agarrado a essa cama, de mãos pousadas na barriga, mãos que me lembram o colo que me deste. que me lembram as viagens que criaste comigo a cortar o ar enquanto me seguravas acima de qualquer outra pessoa. Tens os dias contados, mas não temos todos? Escolheste morrer com amor, como em tudo o que fizeste. "É a vida que nos mata" disseste. Os únicos lugares comuns que suportei, foram os teus.

erva

Persegui o meu braço com fúria
parecia que queria adiantar-se
estava em extâse, euforia
Senti o corpo a arder, milhões de explosões
Quase voei numa dança desarticulada
destinado a perder
Tive medo de fugir-me
do peito rebentar
ri-me de mim por ser pateta
Fui atrás das pernas
Mandaram-me correr
Com vergonha, para mim
Se calhar inconsciente, de certeza
Caí em cima do meu corpo, tonto
Tentei não deixá-lo ir
Acalmou-se mas não o encontrei
No dia seguinte voltei para mim