sábado, outubro 18, 2008

um palco

Não tenho a vida a andar para trás. Não estou de viagem ao passado sem bilhete de regresso. Não é uma revisita. Não sinto um retrocesso emocional, uma analepse nostálgica nem estou preso a glórias gastas. O mundo não está ao contrário, o mundo não está de pernas para o ar. A minha vida adiantou-se, passou por mim e tive um vislumbre. Assustei-me perante a constatação de que a deixei ir mais longe. Para além de mim. Mais rápida, ultrapassou-me. E eu deixei de compreender onde me enfiei.

No palco, tu não estavas, embora te fitasse mesmo à minha frente. Embora não te largasse mordendo-te com os olhos, inspeccionando todas as covas da cara, gestos fabricados, encenados e outros mais ingénuos. Embora te devorasse em aflita contemplação, não te vi. Multidão de estrangeiros em êxtase contigo e eu aqui deslocado, com saudades da dor que me emprestaste. Confuso. Impedido de me fundir na amalgama em chamas, colado estático ao vibrante chão. Já não te procuro, vais à minha frente sem olhar para mim. Os segredos que cantas não contam histórias que eu tenha vivido. Esse pedaços eu não me lembro e falas de mim enquanto estive ausente. Mas todos sabem. Onde fiquei? Quando te encontro? E porque me baralhas com confidências que me confias mas não reconheço? Continuas a falar para mim, julgo, mas não me revejo, nem sei quando te perdi, ou quando adormeceste. E tudo o que precisava era que acalmasses e me confessasses que estamos cá os dois escondidos, camuflados, travestidos, mas juntos. Que me aninhasses nos teus lamentos que foram meus e me segredasses que o resto são manobras toscas para saciar a fome de mudança. Que me pedisses para mantermos a farsa e bailássemos com um mundo iludido.

Há verdades que se deviam ficar pelas fantasias.

quarta-feira, outubro 15, 2008

tolo (canções)

Oh diabo! Onde perdeste as botas?

Porque não consegues tornar-me um homem?

Tu, mosquito, onde besuntas as patas?

Quem é que me cheira hoje?

Quem é que me pica hoje?

Eu sou um espantalho, um cabide de pau.

Troco uma mão por sapatos

Tenho a cabeça de um calhau.

Oh gatuno, de quem tiraste a cara?

Porque não me roubas a mim?

Sou pelintra, sou arara, tenho os bolsos cheios de nada?

Eu sou uma cana, parafuso sem porca,

Um código numa única barra,

Sou um trapo sem tecido.

Oh Senhora, a quem pedi eu este zero?

Esta tola apatia?

Na minha terra há rei,

Que mesmo burro monta o poleiro.

Há juiz sem valores,

A pregar como martelo.

E eu, um bobo sem corte,

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

Oh diabo, onde perdeste as botas?

Porquê ser homem, é tonto?

Diz Senhora, pariste quem, a mim, mais alguém?

Oh mosquito não tenho sangue?

Sou latão, sou palha?

Sou um degrau numa janela?

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

segunda-feira, outubro 13, 2008

vago (canções)

Estou incompleto e faço-me de entulho

Apanho-me por entre furos, às vezes não encho a mão

Minúsculo instável

 

Vejo um trilho e monto-me sem manual

Atiro-me atropelado

Há outro que deambula, adivinho

 

Sem brilho

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Estou paralisado e faço-me de embrulho

O encanto foi dormir

Deixou-me dinheiro para consolo

Há mais quem rescalde, murmuro

 

Sem brilho

 

Para belo e adormecido

És pouco sereno, pouco vendido

Para poeta abatido

És muito vago, pouco sentido

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Sem brilho

o quarto

Há um segredo debaixo da almofada, que repete da mesma forma os dias. Há um gravador com uma mensagem fastidiosa, desconfortável mas necessária, que debita reguladas instruções e tarefas a executar no dia que se levanta. Há uma luz da mesma forma matemática e geometricamente precisa a desenhar volumes e riscar superficies. Uma luz quotidiana, eficaz, regular, moderada, ecológica, natural, económica e desinteressada sobre tudo, a não ser desempenhar a simples função de iluminar sem pretensões, um espaço ritmado por ordens compassadas. Há um som de discurso cuidadosamente articulado e sílabas vincadas e imaculadamente ditadas, um único som que preenche maquinalmente o silêncio absoluto nos seus calculados intervalos. Há um quarto morto com a teimosa disposição dos móveis despidos de valor e intenções a não ser as de preencher o menos óbvio espaço, o menos útil espaço e aí ocupar o que lhes foi permitido. Há contornos tristes de reflectidas frias luzes e desanimadas cores mas sem disso saberem, por ter-lhes sido ordenado que não provocassem nenhuma sensação, que não induzissem ao que quer que se possa sentir, um único pensamento, uma única dúvida, um único sentimento, uma única emoção. Estas superfícies foram programadas para não serem vistas, ouvidas, cheiradas, repetidas, memorizadas ou adivinhadas. Os momentos passados neste espaço são invisiveis. Há um corpo em posição suspensa. Em desalinho, dissonante com o quarto, desajustado ao espaço, apenas condizente na expressão simples, mínima e serena, de um rosto recto, inexpressivo, intemporal. Há um corpo justo, proporcional, ponderado, propositado.

 

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias, diferente de todos os restantes. O dia é diferente deste quarto, mas lá fora. O dia lá fora é sempre diferente, exceptuando a única coisa em que o dia é igual aos outros. O dia é apenas igual aos outros dias, lá fora, pelo facto de que tu não estás lá fora. Tu nunca estás lá fora e nisso os dias são todos iguais. Neste quarto, tens de ser diferente todos os dias, como o são os dias lá fora, com a excepção de que nunca estás lá fora. Tu estás sempre neste quarto e essa é a única coisa que te é permitida ser igual todos os dias. Os dias cá dentro têm de ser todos os dias diferentes, tal como são lá fora. Os dias cá dentro são sempre diferentes, com a excepção de que esta mensagem é igual todos os dias e tu nunca estás lá fora. Hoje vais ser diferente como és diferente todos os dias, excepto lá fora, onde és sempre igual porque nunca estás…

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias…

sexta-feira, outubro 10, 2008

parto

Porque ninguém vai hoje entrar neste hospital. Porque eu não sinto que ajude alma alguma. Porque as luzes verdes amarelam os bancos e já doentes tossem estas portas. Porque o pó enche este silêncio. Porque a sala dormida de febre. Porque as esperas suam desespero e ódio. O vírus radia da TV. A noite aqui não entra. Hoje ninguém entra neste hospital. A morte já está cá.

 

O telefone. A emergência. Quanto é que dou a alguém? Quanto é que empresto de ajuda, quanto me entrego? Quanto é meu desta sala de bocas e gritos digitalizados amarfanhados e diluídos em piadas mortais? Quanto há de humano nestes ecrãs e telefones. Quanto há de urgente nestas vozes? Quantas vidas salvei? Quantas vezes matei?

O telefone toca. É morte?

 

Os pés. Mexer. A casa. O escuro. Luz. Sair de casa. O telefone. Não é dor. Não tem nome. Tenho nome? Falar.

 

Com contracções de 3 em 3 minutos.

Peço desculpa mas não estou a compreender, está a dizer que VOCÊ está com contracções? Que vai entrar em trabalho de parto?

Sim, por favor! Mande alguém rápido!

Está alguém consigo?

Não, estou só.

(…)

Dê-me a sua morada, por favor.

 

Não são dores, não há nome para isto. Não há tempo para isto, não corre nem anda tempo para isto. Corredor, portas, parquet, luz, escadas. Escadas não. Luz, gás, onde está a mala, corredor, traz adiante, pés. Pede aos pés, mexem-se, não há dor, não há nome para isto, venham rápido. Corredor. Há tempo? Não é dor. A chave, os pés, mexam-se. Quanto tempo? Há tempo?

 

Passa-se qualquer coisa de errado, não compreendo.

Minha senhora, não vê o meu estado?

Mas isto é uma piada?

Foda-se! Levem-me.

Não há tempo.

 

Preta! Dona Preta! Ajuda-me! Esta mulher não me vai levar a lado nenhum.

 

Meus Deus, mas está quase a nascer! Mas não vai para o hospital?

Mas você está a ver o mesmo que eu?

Porra de mulher, mas não é uma ambulância, mas não vai nascer um bebé?

 

Isso Preta! Dá porrada nessa puta e levem-me daqui que não aguento.

 

Mas não vê que é um homem?

E não vê que a criança vai nascer?

Mas vai sair por onde?

Caralho, salvem este homem!

 

Eu vou morrer Preta. Eu não aguento.

 

Vai sair por onde?

 

E insiste.

Eu só estou grávido. Eu não tenho respostas.

 

 

Mas a obrigação da senhora não é levá-lo? Este homem precisa ajuda.

 

Preta, eu não aguento. Preta, eu vou. Parto.

terça-feira, setembro 30, 2008

plástico

Porque vi plástico. Porque se entra pelas pernas, quase, e tirei dos bolsos o metal todo que me devolviam se não suspeitasse de mim. Se para mim fosse simples, como o é na verdade e se não me sentisse violado, intrujado, reprimido, oferecido, patético e depois violado e roubado novamente. E às vezes bem me acuso de ser menos metal e mais mineral. Os bichos andavam. Sou o ar o suor o mundo esta sala este dia. E eu inquieto. Que não se dançava nesta luz. Que se maquinavam os desenhos pelos cantos e pelos corredores, nos átrios, nas pistas, os recortes, os focos, os deslizes, os vislumbres. Escorregavam as cores acutilantes e suaves e de bom tom e de arrojados efeitos e eficientes traços e faces brilhantes de caras deslumbrantes e um nada. Um nada. Uma deslumbrante, mais que extraordinária, infinitamente esplêndida explosão de nada.

quarta-feira, setembro 24, 2008

pai

Meu pai, beija-me por favor. Meu pai, dá-me essa tua mão e segura-me certo como fazes instintivamente. Não me largues solto na rua. Meu pai, diz-me que és meu pai para saber que te pertenço e enxuta minhas lágrimas com teus dedos seguros. Meu pai, hoje não quero ser homem e entrego isso a ti. Meu pai, os meus dedos nem sempre sabem certo como fazer o que os teus desenham. Meu pai, há dias em que sou só um rascunho e os meus traços ficam gastos nas pontas. Pai, abraça-me e não me deixes cair. Pai, às vezes as minhas mãos escorregam no ar e eu não lembro como fazes para manter as tuas dominadas e copiar-te. Pai, eu hoje sou outra pessoa e não aquela que fizeste. Meu pai, os homens não crescem, como os pais. Os homens são embriões e eu não sei segurar neles. Meu pai, o mundo segura-se ao colo mas os braços que o sustentam não são vigas, como são os teus. E escapamo-nos. Pai, os outros caem e eu não consigo evitar ser arrastado. Pai, eu hoje sou outra pessoa mas também antes fui.

zero

Era pequenino. Do tamanho de uma formiga. Consegui vê-lo porque o fundo de tão branco o descobriu. Havia tanto brilho em redor que ironicamente se destacou pela palidez. E de imediato entranhou-se um desconforto, uma desconfiança, uma doçura. É por puro preconceito que se sorve esta misericórdia e não há de nenhuma forma indefesa formada. E lá estava minúsculo, quieto. Do que menos há de brilhante, o mais radioso. Mas depressa esquecido. Do menos orgulhoso, vaidoso, narciso, emproado, o mais proeminente e num instante ignorado. A estrela sem cintilo. Esconde-me também. Mete-me torcido no furo, pega-me e dobra em partes muitas, que bem esforçado eu bem caibo e sobra-me espaço de sobra. Deixa-me dormir um pouquinho só, aqui metido no escurinho, no silêncio e longe dos dias todos ao sol, á luz, ao burburinho das conspirações e promessas dos maiores e dos mais capazes e dos mais ambiciosos e mais amados e amantes. Deixa-me deitar um pouquinho aqui nas entranhas da minúscula falha, afastada das conversas de cores e mundos, viagens de célebres feitos, de imagens de glória e terror e de indiferença e de gargalhadas, de choros, de lástimas, de dós, de gentes, de todos os que não são gente também, e dos outros que não todos, e de todos além desses. E longe de mim. Hoje quero apenas diluir-me no pequenino furo, na parte não visível. E deixar-me esquecer as coisas das coisas todas que fazem tombar os heróis e os tristes. Que cobrem de glória e vergonha todos os que, de todos, são cobertos pelo mundo, pela multidão, pelo esplendor, pelo horror, pelo impulso inevitável e incontrolável que arrastam todos aqueles que, de todos os seres, são os que caminham, que desbravam, que arrasam e se inconformam com o que de menos ofuscante tem o tempo e os instantes e as partes mais e menos virgens destruídas e bem ou mal construídas do mundo. Fosse possível sacudir para o chão minha pele. Descascar o meu corpo. Despir o peso e a forma da minha carne, dobrá-la e pousá-la na prateleira acima da minha vista, afastada. Fechar num frasco baço, opaco, o meu pensamento e o meu ser, para que não possa lembrar-me de quem já não sou. E deleitar, ignorante, o vazio. Como os brevíssimos segundos que encerram um orgasmo. E ficar suspenso nesse vácuo por toda a nulidade.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Eu, diabo

Encornei-o nas axilas mas sem o magoar e ainda assim ele guinchou como um porco espetado. Hás-de rebentar todo e inchar. Tenho o diabo na verga, penso, sem ao mesmo tempo achar que é despropositado o pensamento, que não sou de reflexões, ou que não deveria sê-lo porque a semente a espalhar é a do mal e não a da dúvida pois isso é acção de outros. Eu a pensar é que não vem nada a calhar que o outro precisa é de ser fodido como puta a ver se esta merda pega fogo e pouco falta que está aqui um calor dos infernos. E outro pensamento idiota. Que caralho, mas deu-me agora para estas fraquezas, com franqueza! Ainda me ponho doente como o outro e o que há a fazer ainda é muito que pouco podre anda tudo e para me pôr bom ainda tenho que enrabar estes cornudos de merda que só sabem é pedir e roubar e comer e mugir e rugir e gabar-se e conspurcar-se e devorar-se e pavornear-se e foder-se e foderem e foderem-se e mesmo assim ainda não se comeram todos uns aos outros para acabar com esta cambada de rotos de uma vez, mas nem isso valem, nem isso merecem e o castigo é que apodreçam na merda uns dos outros até o sempre e eu cá estou para ajudar a chafurdar. Cabrões… e como isso me faz feliz. Hei-de comer-vos todos e deixar-vos minguados e raquíticos esfomeados mais que se passassem fome, mais que se não tivessem nunca comido e deixar-vos a morrer sem que a morte tenha piedade e sem vos levar. Sem que vos tire das costas o peso das montanhas de estrume que andaram a fazer e a empilhar, alarvos toda a vida, a dejectar merda em cima dos outros, a estrangular e fazer tudo, todos, engolir a infectada esporra dos vossos nulos membros. Eu diabo, vou alimentar o vosso virús, a vossa praga, amontoá-la, multiplicá-la, avultá-la e foder-vos até que os obrigue a perceber que estão a comer o vosso próprio vómito, que vejam como pobres e miúdos são, até que abram os olhos e entendam que o inferno, comparado com o que edificaram, é um paraíso e que lá no inferno não vos quero. Até que ganhem vergonha e com isso sofram e nadem na porcaria que escolheram para vosso mundo. E nesse dia deixo-vos, que mal não haverá capaz de suplantar a consciente putrefacção em que se arrastarão. Mas não tenho tempo para isto, para reflectir, isto não é obra minha, a minha verga é o diabo. E não é vossa, como pensam e gritam vocês inchados de orgulho, seus anões imundos. Que a vocês nada tenho a dar, nada sou e como-vos não pelo prazer de carne, que não tenho, mas para me servir de perversão que é meu vício. Não falem de mim que vossas bocas asquerosas não são dignas de proferir meu nome. Vocês, menos que insectos, não terão mais que a minha contaminação e gravem em vossas cabeças que eu não estou ao vosso lado, eu não vos amo, eu vos desprezo, eu vos piso. Eu tenho uma verga do diabo, um membro malfeitor e ele expelindo-vos o mais hediondo mal, insemina bondade, comparado com o vocês fecundam.

quinta-feira, setembro 04, 2008

a diva

É fácil, não é? É só dizer “amo-te”. Às vezes só ao estalo!

Enquanto pianos mordem guitarras e violinos esporram notas sem sentimentos mas eficazes, tu vais dobrando essa boca de porca e enxutas, ridícula, uma lágrima cristal perfeita triste e crocodila.

 

Chorem-me Levantem-me abracem-me comam-me. Sou vossa. Puta disfarçada. Mas com ar de menina. Linda sou. Como todos querem.

Vê lá se ainda te comem morto por seres tão mordaz oh corno

 

É fácil, não é? É só dizer “amo-te”. Rebenta essa cara com pus.

Enquanto a tua mão flutua e desliza no vestido criança homem e tua carne ri com fome. Vai gozar a alma doutro. Gritas altiva e com corpo pesado descaído de perna flectida toda tu indefesa destruída.

 

Levem-me amem-me beijem-me mordam-me. Sou fraca, sou leve. Escrava mal amada. Um doce esquecido perdido. Como o mundo pede.

Vê lá se ainda te fodem a tromba por seres amargo oh filho da puta

 

O mundo é meu

O mundo é meu

O mundo é meu

E não me canso de comer

 

de ferro

É verdade, voltei! Voltei mesmo há uns dias. O quê? Ainda não tive tempo para nada. Mas já vim há uma semana, ou mais! E estou muito bem, não estou? Estou como nunca estive, com uma saúde, que faz favor! Sinto-me mesmo novo. Mesmo com ar fresco e cheio de vontade de ir atrás das coisas que sempre quis fazer. Não, mas não penses que não fiz nada até então. Oh pá, sabes lá tu. O quê? Parece que não me estás a ver! Então não sabes bem como sou? Eu não paro. Eu sou do tipo que precisa de um dia com 48 horas e mesmo assim, he he he, é de andar a correr de um lado para outro. Não tenho tempo para pensar, pá. Isso é coisa para meninos, para quem ainda respira. Eu ando a mil, ainda me dá uma coisa má. O meu médico já me avisou milhões de vezes – tens de parar, pá, tu tem cuidado que a vida não dura sempre – e não é verdade, então é por isso é que corro, ora então! Se ficasse parado a ver a vida passar ia ser melhor? Ninguém entende? Tenho é de aproveitar! E tenho uma saúde de ferro! Ui, é preciso um comboio para me derrubar. Ainda há de vir a doença que me bota abaixo! Sinto-me novo pá! Eu até tenho medo, com tanta energia. Já imaginaste se me dá uma coisa má? O meu médico já me avisou – tu tem cuidado pá! – mas eu lá consigo estar parado… isso não é para mim. Tenho muita coisa para fazer, não tenho tempo para pensar em descanso, nem tempo nem vagar, que os dias são curtos e um gajo se não se põe a pau é atropelado pelos dias. Eu que o diga que ando a correr de uma lado para o outro. Que vida esta que um gajo nem pára para respirar. Ainda me dá uma coisa má, assim louco esbaforido como ando quase sempre. Mas tenho uma saúde de ferro. O meu médico já me disse – olha tu tem cuidado que a saúde esgota-se – o que é que ele sabe? Ás vezes acho que sou de ferro. Acredita que é verdade. É preciso um canhão para me derrubar. Se pudesse vender saúde, ficava milionário pá. Mas depois com tanto dinheiro nem dormia, ainda dormia menos do que agora e o que eu precisava era de dias com 48 horas. Nem sei quando vou parar. Tenho tanto para fazer. Lembras-te das coisas que te contava, do que queria fazer? Dos planos que eu tinha? Está tudo a andar. Tivesse eu tempo para tudo! Que horas são, pá? Olha, o que fazes durante esta semana?

À toa

À toa atei tua toalha ao meu olhar faminto e doce, eu disse e pensei, ou pensava que tinha dito, mas de certeza notou-se que te lambia e não ia, nunca, deixar que escorregasses por um qualquer lugar de onde não mais saísses. E se isso acontecesse e eu não tivesse atado a corda, ou a toalha, nem me lembro bem porque lambia tão incapaz de pensar, que cego não vi como te agarrei. É só porque não podias ir. Só porque se acontecesse e eu não te tivesse agarrado com minha fome, nem isso, mais uma secura, um nó, como se tivesse atado a mim com uma corrente bruta, eléctrica desejo, que não eras tu mas eu, alterado e vidrado pelo teu reflexo da tua carne na tua luz cheirosa de um dia teu com aroma de terra revirada e tua pele abriu-se com teu suco guloso e atou-me à toa, sem vergonha, à fome que sugaste do meu fraco e muito meu pequeno pedaço de, acho que ser, que não domino, onde só chego às vezes a perceber fragmentos de frases ditas pelo confuso homem que o ocupa e que sem autorização vai à toa atrás de copular o mundo. Mas se tivesses desaparecido por não te ter atado, da maneira frouxa que à pressa arranjei, depressa iria

quarta-feira, setembro 03, 2008

?

Se voltaste para isto porque não ficaste longe? Se era para despejares palavras em tom de indiferença porque não ficaste quieto, como tens feito estes anos a fingir que tens planos? Se queres fazer isto, faz sóbrio. Não há um pingo de amor aqui.

E tu, é só isso que sabes?

Tirem-me este gajo daqui.

relógio

Porque raio este relógio se atrasa tanto? Ontem vi as horas e estava atrasado para a escola. Hoje acordei tarde por culpa deste estúpido relógio e não tomei o comprimido para o tensão baixa. O senhor que me vendeu este relógio inútil garantiu-me que era preciso como um relógio suíço. Mas ele é suíço, disse-lhe. E ele riu. Se soubesse que o relógio marcava as horas e os minutos, não o teria comprado. Mas quem é que quer ter o tempo contado? Ainda mais atrasa-se. É sempre tarde.

quieto

O homem estava sentado na sala e não sabia. Estava às escuras e quieto, apavorado por não saber que estava sentado na sala. Apavorado por não saber o que era um homem sentado. O que era uma sala, o que era o escuro e que nome dar a isso tudo que ele desconhecia. Porque nem todos vemos. Porque nem todos somos homens. E no escuro é melhor.

sabidolas

 

Olha que és um rapaz  espevitado e entendes tudo, meu malandro. Quem haveria de dizer que com essa cara nos entregavas dúvidas? Ainda pensava que estavas ai armado em pintas com essa lábia pintarola de quem sabe o que está a dizer mas gozando, com os outros que menos sabem. Um dia ainda hás-de ser alguém, digo eu! Que agora não és gente para isso e só tens meio palmo, mal medidos, numa colher. Mas ou me engano ou vais ser grande. Ou isso ou importante. Que grande e importante hoje é coisa rara e também não me parece que tenhas cabeça para isso. Vê lá é se não te perdes, como os outros que andam por aí, meu sacana. Tu mete juizo nessa cabeça e não metas com esses sabidolas todos pintarolas que para aí andam a azucrinar a cabeça dos outros. É que agora só se vê é gente a roubar de gente e não como antigamente que não se comia. Hoje come-se e mal. E mesmo assim e por isso, também, mais por isso, acho eu, é que se rouba tanto. Essa gente que tem tanta cabeça mas estraga-se assim. Mas tu és um rapaz espevitado e entendes tudo. Olha, é o que me parece.

as mãos


As minhas mãos fazem covas. Não. As minhas mãos têm covas. Todos os dias mais covas. Enterram-se nas minhas mãos os buracos, os vazios e as coisas que decidi deixar passar. As vezes que não falei e não bati e os desejos que perdi a com… olha foda-se, assim não quero escrever porque continua igual e sem interesse. E é mais uma razão para que se abram buracos nas mãos. Estas que já não têm força para se agarrar ao que quero. E para afastar o que me faço indeciso e consciente. Mas sabes que há quem morra de fome? Sabes que há quem não tenha mãos?

 

O quê?

 

As minhas mãos fazem covas porque estou a ficar mirrado. Na cabeça. Eu sei que já diziam quando eu ainda não tinha a legitimidade para dizê-lo, que isto melhor não fica e depois de velho, só se caminha para pior e quando tiveres a minha idade vais perceber. Mas eu nunca vou ter a idade de ninguém que me tenha dito isto. Há uma outra enorme quantidade de coisas que se dizem e que não se deviam escrever, de tão esgotante e vazio que tudo era e continua a ser, mesmo depois de constatar que é verdade que isto é vazio. Mas deixam de ter covas as mãos? Já li coisas melhores.

canções

um dia


Só vi um dia. Daqui a alguns dias. Só vi um dia, sem mais ver porque a luz encobre, ou descobre, com definição e ruído em demasia. A sombra encobre ou descobre a luz que não vinga. Só vi um dia, não as coisas, não movimento, não cores, não alguém, não coisas. Só vi um dia, rasgado, encoberto, descoberto, nítido, não. Turvo, não. Difuso. Só vi um dia e não gostei do que vi. Porque nesse dia que vi, vi que não estava aqui.

canções

Regresso

 

E foste. Ficando

Deixaste. Parando

Parado, riste.

Voltaste a rir sem vontade

E sem verdade como antes quando parado

Ficaste, como deixando.

É igual.

O regresso presente

Amanhã faz de novo

Fica voltando de volta ficando à volta

Para trás o presente ou para a frente

E depois 

novo de novo

Estás?