terça-feira, abril 05, 2011

a cara triste do sr adeus

num mundo, que não este, existe, do outro lado de si mesmo, uma sala, de uma cor que não queremos saber qual. nessa sala, duas estátuas voltadas de frente para si estão assentes cada uma num palito. os palitos, verticais, de um qualquer material, não estão sob esforço, nem suportam qualquer peso, apesar da considerável dimensão das estátuas. a sala não é grande nem pequena e está despida de adornos. entre as estatuas, sentado numa cadeira, está um homem. o homem fixa triste, o rolo de papel estendido, entalado entre os palitos que sustentam as estatuas. esse rolo tem um texto escrito, na face do papel voltada para o chão.
a estátua, não mais alta que a outra, olha inexpressiva para a segunda estátua. da outra estátua não vamos contar nada.
o homem veio para aqui, ou aqui apareceu, sem interessar para quê ou porquê, sendo que, sobre aquela parte de lá desse mundo, nada sabemos. e ao homem interessa apenas que o que foi escrito não há-de ser lido, a menos que o papel seja tirado debaixo dos palitos e que as estatuas caiam, dado que não há quem as segure ou mecanismo aplicável que possa alterar a actual configuração do espaço e sua ocupação.
é sobre as estatuas, o texto escrito no rolo de papel? será sobre o aparecimento da sala, a construção da sala, a história de quem a fez, ou texto sobre a posição das estátuas e a escolha por pendurá-las em palitos? será um texto sobre alguma coisa, importante ou não? - estas questões ocupam, desde que se conhece, o senhor sentado na cadeira entre as estátuas.

quarta-feira, novembro 17, 2010

gonçalo vai à rua

maria sai de casa. maria sai de casa sem casaco. maria sai de casa sem casaco e sem tabaco. maria sai de casa, deixando o tabaco no casaco e esquecendo–se do casaco apoiado nas costas do sofá. maria sai de casa sem casaco e nele o tabaco, calçando chinelos. Maria sai de casa, apressada para trabalhar e apercebe-se, já depois de três passos dados, com pés alagados numa poça de água, salpicada de grossos pingos de chuva peganhenta que veio para a rua com chinelos calçados e sem casaco. e nele o tabaco. volta para trás. na rua corre-se. cruzam-se vultos em fuga, uns mais rápidos e audazes que outros, a confundirem-se com bermas e alpendres, arcadas, carros e árvores. os sobretudos e gabardines, as pernas pesadas, as gotas das golas, os cabelos escorridos, as botas encharcadas, os sapatos luzidios, e o chapinhar destes moldes e pedaços todos, confundidos na chuva, emaranham-se numa rede mal definida. em rotas toscas e atordoadas, a desbravar partículas frias com destino a pousos mais enxutos. a água vem disparada em rajadas densas. maria leva menos de um segundo a dar atrás as mesmas três passadas. mas não rápida o suficiente para evitar a manta de chuva abatida no seu corpo. riu-se. riu-se de não ter saído calçada e vestida. riu-se de não ser suficientemente concentrada nas acções triviais. riu-se com preocupação, para não vincar mais em seu espírito esta inquietação. entrou em casa desassogada. voltou à banheira que tinha largado há não mais que pouco tempo e encharcou-se em escaldão. pela janela viu que não ia tirar o casaco das costas do sofá nem calçar as botas. enterrou a mão no bolso e tirou-a já com um cigarro.
gonçalo vai à rua. as árvores de pingos reluzem os candeeiros e os faróis. os vidros escorrem vapor. a noite espalha-se quente e abafada. tira a luva para sondar cigarros no bolso do forro do casaco e tira um. a chuva recomeça e o cigarro não foi aceso.

rumo


não encontrei onde me agarrar. não entendo onde terminam os braços e começam as mãos. não vejo mais que umas toscas formas e cores indefinidas ou por mim desconhecidas. vou ao encontro daquilo ali, que talvez seja qualquer coisa. vou de encontro. não descubro matéria sólida, não descanso em pensamentos fáceis ou imediatos. não me sento em piso fértil ou seguro. não me sento, não consigo pousar. o que aqui estava mudou de sítio. existem marcas do que parece ter sido alterado, ou quero acreditar que foi alterado, que isto não é só um sitio disforme, imperceptível. tão vago que continuo sem entender se o meu braço é extensão do meu corpo e se as minhas mãos começam, quando meu braço termina. quero é agarrar depressa qualquer coisa, sem escorregar. percebe-se o inicio de marcha. o meu corpo solta-se em sintonia com o movimento e equilibra-se o possível, contrariando a queda. há aqui uma intenção difusa de se ir para algum lado. derrama-se no suposto piso qualquer coisa de novo, na medida em que o espaço transforma-se, ao avançarmos. sendo que parecemos avançar. as cores mantêm-se ténues, tão ocas que não entendo tratarem-se de cores, ou então esqueci-me da sua aparência e nomes.

absolvição

e pedi desculpa.
não sou de arrastar-me inchado em orgulho, que já observei muita coisa e sei responder com a cara dos outros, daqueles que dobram membros a mando. custa-me pouco. leva-me muito menos, porque involuntariamente já o pulso está estendido e suspenso na oferta mais que antecipada e sem ordem atiro-me. é feminino? qualquer coisa menos outra coisa tem de ser obrigatoriamente antagónica. é a teoria, invariavelmente mastigada, do equilíbrio natural. é? não masculino é feminino? não acutilante é mole?
não sou de descansar em dúvida. tenho reparado que, perdão, sei desde muito cedo, que ao entregar-me em agrado, não atormenta meu espírito qualquer desconfiança ou segredo. o mal é devolvido e entregue, caso seja certo que de menor graça se fala.

domingo, novembro 14, 2010

vivo

…e era mais alto que uma árvore. Mais forte que um touro. Era o que parecia. Com uma pele torrada e engelhada, brilhante do desgaste ao sol. desceu pela rua às curvas, a passo furibundo, aos pontapés no ar, a praguejar. Ninguém quis chamar importante àquele instante, que era já hábito, que no escaldar do chão, logo depois do dia ao meio, as botas do Raimundo corressem a derreter borracha. Que o resmungar se confundisse com o silvar e o assobiar, mais ou menos quente como o próprio ar, ou que viesse mais ou menos pesado nos ombros, ou no sobrolho, dependendo do quanto calor rangia nas telhas e no vidros pequeninos das janelas aflitas a assar, na manhã, na tarde e antes do anoitecer, sempre que o arder do sol disparasse o bafo das chamas até ao pó dos lancis, da fachadas, dos alpendres. E quase sempre, era assim que a rua derretia, sacrificando a calçada e o alcatrão ao lume lento e doente dos dias de verão.
Na lavandaria, os vidros da montra escorrem gotas mornas que se entrosam no vapor morto. o chão

ausente

até diria, com agrado, bom olhos o vejam. mas de facto não o vejo muito bem. parece-me mais abatido. nesse estado faz sentido aparecer? porque não usou este intervalo para se pôr ao fresco? ou desaparecer mesmo? sim, efectivamente esteve ausente. mas fora daqui, não é? porque não aproveitou para sair de vez, daqui, de si, de nós? ir para longe? ou para nenhures, algum sítio para lá de qualquer coisa que consideremos longe? entende-me? para nós seria igual, mas a si fazia bem, não fazia? olhe que parece-me que sim. porque não passou por cá, já que não esteve longe? andou mesmo desaparecido… até tinha comentado isso, julguei que não voltasse. já pensou em sair de si? eu penso muito. nisso e noutras coisas, todas elas fora de mim. sempre fora de mim. o que quer isto dizer? bom, talvez se experimentasse, me conseguisse responder. mas está de passagem ou veio para ficar? faz bem, faz bem…

era só isso

de noite, na luz, iluminado, como se de dia tratasse, fico tenso
podia ser dia.
no recorte da luz, no desenho feito pela sombra, num corpo, num qualquer corpo, um exagero de peso
há aqui mais fantasmas do que era suposto. há aqui mais aparentes memórias do que a razão suspeita.
há aqui um cheio nada. um repleto e perplexo sentimento de vazia suspeita.
pode-se dizer que arrastando por aqui o corpo, pouco se percebe do que ficou atrás e do que avança para outra parte.
podia ser dia, que seria o mesmo, a diferença estaria somente, talvez, desconfio, no desenho da luz e na dureza ou recorte das sombras.
mas uma vez mais, é só uma suspeita e ainda assim, também esta, bastante frágil.
da sombra, do escuro, vem pouco sossego. da luz, pouca calma.
não há sono, nem dormência, nem incómodo. ou pelo menos, não estão convictamente presentes.
há só uma rua, com suas fugazes luzes e ideias fracas, de existências aparentes ou escorregadias.
há esta rua, e outras quaisquer, onde andei. e pouco me lembro dos outros caminhos.
há gente por aqui, mas não recordo se me atrasei por isso.
não consigo lembrar-me de algum episódio em que tenha acontecido qualquer coisa que me tivesse tirado deste estado. ou deste percurso.
há um ritmo. quer dizer, há uma forma geométrica, delineada, não sistémica ou compassada, apenas uma forma, neste caminhar.
aqui, de noite, há mais perguntas.
quanto mais luz há, quanto mais peso nas pálpebras, mas ardor nos olhos, quanto mais penoso o avançar e desbravar da imensidão branca e dura, por estas ruas, sinto mais dúvidas.
e se apagássemos?
- como?
- e se apagássemos a luz, ou o rasto?
- que ganhavas com isso?
- algo novo. remover o que é velho.
- é o que queres?
- é o que é possível.
- vais ficar melhor?
- respondo depois.
- depois será tarde…
mas preciso disso. julgo que preciso. julgo que preciso qualquer coisa. pelo menos é a ideia que tenho. é uma ideia que tenho. aqui exposto à claridade, dói-me a cabeça. e quando não dói estou a preparar-me para a próxima indisposição, que não tarda a vir. e mesmo quando tarda em chegar, é quase como se não demorasse.
é tudo muito frágil, muito volátil. dá-me a impressão que é assim.
- se calhar dás importância às coisas erradas.
- mas calhando, como sabes que são as erradas?
- não sei, mas é uma hipótese…
- tudo é uma hipótese.
- sim, e tudo tem diversas facetas.
- e isso ajuda-me?
- mas queres ajuda?
- pelo menos a luz podia ser mais ténue.
- era só isso, afinal?

segunda-feira, março 30, 2009

a cara

Ajeitei a cara porque tinha um olho quase em cima do lábio. Não sei bem o que quero ainda, mas gosto do castanho mel. Faz-me lembrar as manhãs em que comia torradas com mel e manteiga. Eu sei que não é um bom motivo, mas nós gostamos ou não das coisas por razões emocionais. Pelo menos comigo é assim. Também não é para usar todos os dias, é só no caso de me sentir estranho é que ponho esses. Segura-me aqui nestas orelhas que eu vou ali buscar uns queixos. Sim, gosto do meu, mas às vezes parece que se desloca mais para a esquerda e também acho-o demasiado esguio para este nariz. Que foi, o olho ainda não está bem? ah assustaste-me, fizeste cá uma cara…

aqui

É de carnaval esta rua. É dos carrosséis e dos cavalos de borracha a imitar madeira. É de luzes fracas e cores desmaiadas à paulada. Podia haver aqui crianças, mas as crianças foram todas para outra rua e ninguém me avisou. Ninguém me veio chamar para ir para a rua melhor. Ou maior. Esta rua é de tinta. E eu queria que parassem de rir. Eu queria que parassem de viver e que se virassem todos para mim. Porque eu escolhi esta rua. Eu sei que esta rua é a melhor. E estão todos enganados. Aqui há cores fracas e imitação de festas. Aqui há histórias contadas. Aqui estou eu.

sem saber

Primeiro senti o frio e deslizante toque da madeira daquilo que sinto ser uma guitarra. Parece-me. Não posso jurar porque não sei quantas cordas tem uma, nem sei as dimensões exactas, mas será uma guitarra ou um instrumento da mesma família. Agarrei-a, como se tocasse contrabaixo, colocando-a entre as pernas. As cordas estão bem esticadas. É normal. Mas não deixo de pensar nelas como armas. A ponta dos dedos desliza no aço com um certo respeito, um qualquer receio de que as cordas saltem ou se quebrem. Eu não sei tocar guitarra.

Continuam aqui. Não sei quantos. Apenas sinto estalos na sala. O chão a ceder ao peso ou corpos a mudar de posição pelo demasiado tempo em que mantêm de pé. Eles.

Há um cheiro qualquer a flores ou plantas e a diluente. A porta é de metal e o sitio deve ser amplo e vazio, dado o eco causado pelo estrondo da porta ao fechar. Não sei ao certo quantas pessoas aqui estão. Não sei o que fazem, nem o que pretendem. Não sei porque me colocaram nas mãos uma guitarra.

Ontem deixei em cima da mesa do meu senhorio, um bilhete a pedir-lhe que não tocasse à minha campainha durante a noite. O estranho é que não entendo o que me deu para entrar na casa dele. A porta dele estava entreaberta e não vi ninguém, mas também não procurei saber se alguém estava em casa. Apenas entrei, fui à sala e deixei o bilhete em cima da mesa. Quando saí pareceu-me ouvir a porta da minha casa fechar. Mas não posso garantir que tenha sido isso, porque eu não me lembro se a deixei aberta ou fechada. Mas se não vive ninguém na porta ao lado e se o som vinha do meu piso, que outra coisa poderia ter sido? Não voltei a casa. Como tinha a chave da casa do último piso, porque ma deixaram uns amigos que se ausentaram, eu fiquei por lá. Eles ausentaram-se há, parece-me, uns meses. Mas não faz muito sentido, porque foram de férias. Julgo… a minha casa está, portanto, por conta própria. Assim como estão por conta da minha casa, quem quer que lá esteja, se estiver. E a casa dos meus amigos ficou pró minha conta. Umas horas. Até eu me dar conta que estou aqui, sem saber porquê, nem com quem. Por conta de quem estão as outras casas? Quantas casas já vi? Em quantas já dormi? Dormi aqui também? Não me importo de aqui estar. Não me importo de não ver. Só não me deixem sozinho aqui. E levem a guitarra. Não me serve de nada. Mas não falei.

sábado, outubro 18, 2008

um palco

Não tenho a vida a andar para trás. Não estou de viagem ao passado sem bilhete de regresso. Não é uma revisita. Não sinto um retrocesso emocional, uma analepse nostálgica nem estou preso a glórias gastas. O mundo não está ao contrário, o mundo não está de pernas para o ar. A minha vida adiantou-se, passou por mim e tive um vislumbre. Assustei-me perante a constatação de que a deixei ir mais longe. Para além de mim. Mais rápida, ultrapassou-me. E eu deixei de compreender onde me enfiei.

No palco, tu não estavas, embora te fitasse mesmo à minha frente. Embora não te largasse mordendo-te com os olhos, inspeccionando todas as covas da cara, gestos fabricados, encenados e outros mais ingénuos. Embora te devorasse em aflita contemplação, não te vi. Multidão de estrangeiros em êxtase contigo e eu aqui deslocado, com saudades da dor que me emprestaste. Confuso. Impedido de me fundir na amalgama em chamas, colado estático ao vibrante chão. Já não te procuro, vais à minha frente sem olhar para mim. Os segredos que cantas não contam histórias que eu tenha vivido. Esse pedaços eu não me lembro e falas de mim enquanto estive ausente. Mas todos sabem. Onde fiquei? Quando te encontro? E porque me baralhas com confidências que me confias mas não reconheço? Continuas a falar para mim, julgo, mas não me revejo, nem sei quando te perdi, ou quando adormeceste. E tudo o que precisava era que acalmasses e me confessasses que estamos cá os dois escondidos, camuflados, travestidos, mas juntos. Que me aninhasses nos teus lamentos que foram meus e me segredasses que o resto são manobras toscas para saciar a fome de mudança. Que me pedisses para mantermos a farsa e bailássemos com um mundo iludido.

Há verdades que se deviam ficar pelas fantasias.

quarta-feira, outubro 15, 2008

tolo (canções)

Oh diabo! Onde perdeste as botas?

Porque não consegues tornar-me um homem?

Tu, mosquito, onde besuntas as patas?

Quem é que me cheira hoje?

Quem é que me pica hoje?

Eu sou um espantalho, um cabide de pau.

Troco uma mão por sapatos

Tenho a cabeça de um calhau.

Oh gatuno, de quem tiraste a cara?

Porque não me roubas a mim?

Sou pelintra, sou arara, tenho os bolsos cheios de nada?

Eu sou uma cana, parafuso sem porca,

Um código numa única barra,

Sou um trapo sem tecido.

Oh Senhora, a quem pedi eu este zero?

Esta tola apatia?

Na minha terra há rei,

Que mesmo burro monta o poleiro.

Há juiz sem valores,

A pregar como martelo.

E eu, um bobo sem corte,

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

Oh diabo, onde perdeste as botas?

Porquê ser homem, é tonto?

Diz Senhora, pariste quem, a mim, mais alguém?

Oh mosquito não tenho sangue?

Sou latão, sou palha?

Sou um degrau numa janela?

Sou o tolo do senhor.

Eu, o tolo do senhor.

segunda-feira, outubro 13, 2008

vago (canções)

Estou incompleto e faço-me de entulho

Apanho-me por entre furos, às vezes não encho a mão

Minúsculo instável

 

Vejo um trilho e monto-me sem manual

Atiro-me atropelado

Há outro que deambula, adivinho

 

Sem brilho

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Estou paralisado e faço-me de embrulho

O encanto foi dormir

Deixou-me dinheiro para consolo

Há mais quem rescalde, murmuro

 

Sem brilho

 

Para belo e adormecido

És pouco sereno, pouco vendido

Para poeta abatido

És muito vago, pouco sentido

 

Sorrio encardido mordendo razões, sumido

Procuro

 

Sem brilho

o quarto

Há um segredo debaixo da almofada, que repete da mesma forma os dias. Há um gravador com uma mensagem fastidiosa, desconfortável mas necessária, que debita reguladas instruções e tarefas a executar no dia que se levanta. Há uma luz da mesma forma matemática e geometricamente precisa a desenhar volumes e riscar superficies. Uma luz quotidiana, eficaz, regular, moderada, ecológica, natural, económica e desinteressada sobre tudo, a não ser desempenhar a simples função de iluminar sem pretensões, um espaço ritmado por ordens compassadas. Há um som de discurso cuidadosamente articulado e sílabas vincadas e imaculadamente ditadas, um único som que preenche maquinalmente o silêncio absoluto nos seus calculados intervalos. Há um quarto morto com a teimosa disposição dos móveis despidos de valor e intenções a não ser as de preencher o menos óbvio espaço, o menos útil espaço e aí ocupar o que lhes foi permitido. Há contornos tristes de reflectidas frias luzes e desanimadas cores mas sem disso saberem, por ter-lhes sido ordenado que não provocassem nenhuma sensação, que não induzissem ao que quer que se possa sentir, um único pensamento, uma única dúvida, um único sentimento, uma única emoção. Estas superfícies foram programadas para não serem vistas, ouvidas, cheiradas, repetidas, memorizadas ou adivinhadas. Os momentos passados neste espaço são invisiveis. Há um corpo em posição suspensa. Em desalinho, dissonante com o quarto, desajustado ao espaço, apenas condizente na expressão simples, mínima e serena, de um rosto recto, inexpressivo, intemporal. Há um corpo justo, proporcional, ponderado, propositado.

 

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias, diferente de todos os restantes. O dia é diferente deste quarto, mas lá fora. O dia lá fora é sempre diferente, exceptuando a única coisa em que o dia é igual aos outros. O dia é apenas igual aos outros dias, lá fora, pelo facto de que tu não estás lá fora. Tu nunca estás lá fora e nisso os dias são todos iguais. Neste quarto, tens de ser diferente todos os dias, como o são os dias lá fora, com a excepção de que nunca estás lá fora. Tu estás sempre neste quarto e essa é a única coisa que te é permitida ser igual todos os dias. Os dias cá dentro têm de ser todos os dias diferentes, tal como são lá fora. Os dias cá dentro são sempre diferentes, com a excepção de que esta mensagem é igual todos os dias e tu nunca estás lá fora. Hoje vais ser diferente como és diferente todos os dias, excepto lá fora, onde és sempre igual porque nunca estás…

O dia hoje, lá fora, é diferente dos outros dias. O dia lá fora, é, tal como nos outros dias…