sexta-feira, dezembro 24, 2004

antes de ir

Meia hora. Não lembro de ter sido tão feliz como nesta última semana. Embora compreenda que não possas aceitar é este o momento certo para ir. Quando, na semana passada, atendi o telefone e ouvi a tua voz, fiquei tonta. Não a reconheci, claro, mas depois de desfeita a desconfiança ia caindo, com o impacto do estremecimento que senti. É difícil descrever. Não te via há 17 anos. Levei com uma tal lufada de vida que me senti como se toda a Vida tentasse entranhar-se em mim. Como se a própria existência e as memórias mais remotas e mais amachucadas, rebentassem os fechos das arcas e me preenchessem numa explosão Universal. Vi o brilho cego do nascimento dos mundos. Tinha-me esquecido de ti. Tantos anos de dias amenos, de refeições requentadas, de noites mal acompanhada. Tanta leitura vã, apagada, tantos passeios adormecidos, tantas camas desprezíveis, corpos avessos, beijos errados, sorrisos esforçados. Tantos festas frias, festas recortadas, festas festivas e nauseas festivas. Ao fim de tantos anos a marinar, percebo que me esqueci de ti. Quando desliguei desatei a chorar. Fui atender o telefone nua, com uma carta para a minha mãe, em cima do televisor e uma faca na outra mão. Estava a falar contigo e a olhar para o espectáculo montado na sala. Não acredito em sinais. Não penso que me tenhas salvo de nada. Fui feliz contigo, com a nossa casa. A nossa pensão. Os nossos bonecos feitos de meias. Com o jardim de baloiços podres e o lago sem peixes nunca limpo. Com a ferrugem nas mãos e o vestido de alças caído nos ombros. Fui feliz a jogar à bola à chuva, de vestido branco. A chorar presa à cama com varicela e a ver-vos esconderem-se no pátio e a chapinharem no lago, ou a colarem o nariz no vidro do meu quarto. A sentir as tuas mãozinhas dentro das minhas cuecas, atrás do relógio na sala, com a mãe na cozinha a remendar calças. Fui feliz a competir convosco no meu supersónico carro de rolamentos com autocolantes da Barbie e do Sport Billy. "O poder às meninas!" Dizia a tia Glória. Ficava radiante quando tínhamos na nossa rua os carroceis, em Junho e o tio dava-nos dinheiro para comprarmos algodão doce. O dinheiro chegava só para um ficha nos carros de choque. Foste meu namorado, pai, irmão, amigo.
Tive medo de não te reconhecer, mas quando vi as tuas sardas e os dentes desalinhados, voltei a ter 7 anos. Vi um menino outra vez, a única das pessoas que foste e que eu conheci. Vi-te a arrastar a mala pelo aeroporto, já a rir em direcção a mim. Parecia que trazias uns berlindes novos. No taxi não sabia o que te dizer, o que te contar, como se 17 anos tivessem sido 5 minutos e tudo o que devias saber sobre mim, já sabias. Mas eu não sou mesmo nada do que fui. Tu não me deste novidade nenhuma. Não me contaste nada. Numa semana inteira, não escapou comentário nenhum sobre aquilo que és e tens sido. Devolveste-me a minha meninice, adivinhando que eu precisava renascer. Voltámos a correr pelas Avenidas a tocar às campainhas. Caminhaste atrás de mima pregar-me rasteiras. Fomos afugentar os pombos para a praça e montar baloiços para as traseiras. Passámos dias inteiros a devorar programas chatos e a comer bolachas com doce. Levaste-me a jantar à Feira Popular, às 6 da tarde, para podermos ficar a noite toda a ver os outros rirem e a gritar de excitação. Compraste-me chupa-chupas e algodão doce. Obrigaste-me a vestir um vestido e foste de jardineira e camisa aos quadrados para o cinema. Antes de ires, pediste-me para eu ficar. Não sei como soubeste, mas não te perguntei.
A vida não passa em flashback. Na verdade não sei se no fim, os outros pensam no passado, não sei se pensam. Serei a típica suicida? Estará tudo isto descrito em algum livro? Será um lugar comum? Uma evidência? Terei um perfil traçado e a minha morte descrita cientificamente em algum manual de psicologia? Um banho de imersão, enfrascada em drogas. Terei seguido os passos estabelecidos nalgum capítulo e estará neste momento alguém a lê-los, para os despejar num exame amanhã? 32 comprimidos. Foi coincidência. Faltam talvez 5 minutos. Falta o tempo da minha vida. Falta o tempo que resta da minha vida, o mesmo tempo que decorreu se espremer estes anos todos. Cinco a viver, cinco para morrer. Posso fazer agradecimentos. Posso escolher aquilo que me leva a acabar comigo. Escolho-me a mim, não sou parva. Não foi por causa de pais ausentes nem violência, nem nenhum trauma recalcado. Estou a convencer-me disto? Assustei-me quando sangrei a primeira vez, com as mãos sujas, e as calças manchadas de tinta da china e ninguém em casa. Assustei-me quando a avó me ia apanhando com o Pedro. Assustei-me quando fui perseguida pelo estacionamento no meu vigésimo aniversário. Tive medo quando o Rodrigo me largou na auto-estrada em Leiria e quando depois me expulsou de casa. Tive medo quando apresentei a tese de mestrado, cheguei a mijar-me. Senti raiva quando o Rui me colou pastilhas no cabelo e a minha mãe cortou-o. Senti raiva quando o Alberto rasgou as minhas fotografias com o Nuno. Mesmo tendo-se passado muita coisa, porque sei que se passou, nunca amei nada com a intensidade que desejei. Nunca tive certeza de estar a viver ou a perseguir um sonho. Passei por aqui. A água já está fria.

2 comentários:

Anónimo disse...

Sou eu, uma das vítimas de hoje de manhã. Anónima por preguiça. Não precisas da minha opinião. É só para dizer que li. Como sabes, tenho prá troca :)

Salvé o retorno do zero às letras
H.

Anónimo disse...

Desejo que possamos Viver perseguindo os nossos sonhos...cada vez mais!

RedBaron